PSICANÁLISE COM CRIANÇA E A SUPERVISÃO

Apontamentos iniciais


Por onde começar? Pelo começo, você me diria. Pelo início, com certeza. Ou melhor, pela instauração daquilo que Freud, em 1896, denominou pela primeira vez no texto Novas observações sobre as psiconeuroses de defesa de Psico-análise. A partir do tratamento de Anna O... com J. Breüer, que mesmo sob hipnose apresentava dificuldades para falar, Bertha Von Pappenheim – verdadeiro nome de Anna O... – deu nome a esse procedimento de Talking Cure, o tratamento pela palavra.

Passados 100 anos deste ato inaugural de Freud que faz com que o saber seja incluído nos ditos dos pacientes, a regra fundamental da associação livre permanece como a única condição imposta ao analisante na direção do tratamento, o que vem apontar para a vocação da Psicanálise: tudo ocorre dentro e pela linguagem.  A Psicanálise, assim, tem uma relação imediata com a linguagem. Para Freud, existe uma estreita relação entre a Psicanálise e a linguagem, uma vez que a Psicanálise vê o seu objeto na fala do sujeito. Para ele, o psicanalista não tem outro meio ao seu alcance para explorar o funcionamento da estrutura e das instâncias psíquicas do sujeito além da fala.

Na estrutura do ato discursivo, o sujeito falante serve-se da língua para nela construir a lógica do seu discurso. É neste discurso que a língua, comum a todos, torna-se o canal de transmissão de uma mensagem única, própria da estrutura particular de cada sujeito “que imprime sobre a estrutura obrigatória da língua uma marca específica, em que se marca o sujeito sem que por tal ele tenha consciência disso”. Desse modo, para o psicanalista, o discurso vai além do dito, do dizer explícito, carrega consigo o não-dito e o inter-dito, o outro de nós mesmos, que por nós é ignorado e recusado, conforme sustenta Anika Lemaire.

Por outro lado, o questionamento que surge ao se tomar uma criança em análise é como se apropriar deste aparato linguístico de Freud e Lacan e aplica-lo na clínica com crianças. Como fazer da regra fundamental a sustentação de uma clínica do sujeito que, por muitas vezes, não possuem insígnias simbólicas suficientes que possibilitam a sua fala e, por conseguinte, a sua cura. Como tomar uma criança em análise tendo o referencial psicanalítico como suporte?

O Caso clínico, a supervisão e seus efeitos

Uma mãe busca atendimento para seu filho de 6 anos queixando-se de uma possível homossexualidade de seu filho. Sua busca por terapia era encontrar alguma forma corretiva para aquilo que julgava ser o sintoma de sua criança. A partir disso, o psicanalista se questiona sobre como acolher uma demanda de cura sem se incorrer no risco de práticas ajustativas e adaptativas de uma certa psicologia que se configura como um conjunto de técnicas que A. Badiou denominou de técnicas de adaptação social fundamentadas em uma ética do Bem.  A Escola de Lacan vem nos ensinar que não há uma Psicanálise de Adultos e uma Psicanálise de Crianças, mas uma Psicanálise que lida com sujeitos do Inconsciente, buscando desvendar a novela fantasmática na qual o Sujeito encontra-se enredado. Seguindo essa orientação, Rosine Lefort sustenta que “A criança é um sujeito por inteiro. (...) não há diferença entre uma cura de adulto e a análise com uma criança”.

Sem seguir normas padronizadas, mas tendo como um de seus princípios o sujeito do inconsciente, a Psicanálise aposta na norma do Sujeito, que no caso do menino em questão, ele mesmo se propõe brincadeiras, jogos e passa para um jogo de adivinhação através de uma sequência de desenhos, o que faz pensar no surgimento de uma cadeia de significantes, um significante remetendo a outro significante, fazendo também uma demanda ao Analista.

Em Análise com crianças o que importa é o brincar e não o brinquedo, visto que o brincar é configura-se como uma atividade que impulsiona a criança ao outro, incita a criança a saber qualquer coisa sobre o Outro. Ainda é capaz de reafirmar o que ele imagina do Outro. A razão do brincar é uma conclusão ou mais exatamente, a busca de uma conclusão.

A supervisão, a seu tempo, possibilita compreender, que a criança se interroga. Interroga sobre o seu desejo, o lugar que ela ocupa no drama familiar e apresenta, ela mesma, uma demanda de cura dirigida a um Analista. Além disso, o seu sintoma também é transformado em enigma, em uma questão que o Sujeito se vê instigado a decifrá-la. Neste processo todo, a criança nos diz; cabe ao Psicanalista escuta-la. Escuta-la, entretanto “sem nos agarrar a um saber que poderia vir dar num fechamento, que feche; cabe a nós tornarmos disponíveis (...) e não ser mais que uma voz que deixa lugar à criança como analisante pleno”.

Constituindo-se como um dos eixos da tríade de formação do Psicanalista proposta por Lacan, juntamente com a análise pessoal e o cartel, a supervisão torna-se assim um ponto arriscado de estabelecimento da figura do supervisor. Diferentemente do professor, em Psicanálise o supervisor é um analista em posição de escuta de outro analista, procedendo a uma certa suspensão, ainda que temporária, de seus conhecimentos, entregando-se a uma atividade associativa e elaborativa em referente àquilo que está sendo dito. Nesta escuta, como numa sessão de análise, a escuta flutuante é fundamental como ponto de ancoragem para as ponderações da condução da análise por parte do outro analista.

Um desejo que se faz presente ou da sessão analítica como um encontro
Na prática com crianças, a presença dos pais enquanto informantes de um uma certa condição da criança, função esta desempenhada nas entrevistas preliminares. Tais entrevistas visam verificar a função sintomal, ou seja, que o sintoma, o mal-estar trazido pelo sujeito transforme-se em questão para o sujeito, como um enigma que ele busca responder. No mesmo viés, a função diagnóstica em psicanálise ocorre nas entrevistas preliminares, no intuito de se verificar em que estrutura se situa o sujeito, servindo como um indicador na direção do tratamento. Finalmente, a função transferencial como fator fundamental para o início de uma análise, condição de verdadeiro amor que o analisante se coloca diante do Analista.  Sendo assim, na psicanálise, com adultos ou crianças, o que está em jogo não é um conjunto de técnicas aprendidas. Mais do que técnica e procedimento, o que está em questão é a dimensão ética, que subordina os recursos técnicos: “Uma ética do desejo que se põe em jogo desde o lado do analista. Isso que chamou desejo do analista e que, como tal, se manifesta na interpretação que, como não é uma tradução, não se refere ao significado, senão ao significante, que dito pelo analista, terá que ser interpretado pelo analisante”, conforme defende Casté.
A ética da psicanálise é a ética do desejo. É a ética que toca o real do sujeito.  Na criança, o real pode aparecer de diversas formas e, no caso citado, aparece como um sustentáculo do sintoma familiar, colocando-se assim como um lugar de finalização do sintoma do par parental.  O tratamento possível de ser feito é o de sempre: a cura pela palavra, pois só a linguagem é capaz de curar aquilo que ela mesma causou.
Tempo de concluir
Aplicar a psicanálise ao tratamento de crianças parece, à primeira vista, como uma impossibilidade. A supervisão e a prática clínica vão dizer que não.  De forma algum, a psicanálise pura, aquela que é uma sistematização, não contradiz a aplicada.  A psicanálise pura é uma espécie de formulação teórica, uma escrita em termos lógicos, “é uma experiência regulamentada, da qual se pode dar conta a partir do fantasma, tal como se apresenta quando o sujeito esbarra nele, depois o atravessa e finalmente dele se desprende”, conforme defende Ignès Aflafo.
Articular psicanálise pura, aplicada, clínica da criança e supervisão constitui-se como uma tarefa árdua e proveitosa, pelos efeitos que tal articulação produz na criança, enquanto analistante, e no analista, enquanto aquele que se oferece, de corpo e ouvido à angústia da criança. Trata-se de uma arte, a arte do impossível, que juntamente com educar e governar configura-se como o impossível proposto por Freud. Impossível, mas não praticável e sem efeitos.

Para saber mais:
FERREIRA, Tânia. A escrita da clínica: psicanálise com crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.



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