Interdisciplinaridade e transdiciplinaridade (III): Paixão, emoção e psicanálise
Conforme discutíamos anteriormente acerca das emoções no discurso sob um enfoque psicanalítico e suas implicações nos estudos interdisciplinares, agora começamos, de modo mais específico, a pensar na teorização freudiana sobre a emoção. para Freud, a emoção permanece na consciência e é despertada por fatores da ordem da superfície do aparelho psíquico. Para o pai da Psicanálise, lidar apenas com lembranças e ideias é permanecer na superfície e somente o afeto tem valor na vida mental. Assim, a emoção só o é de fato quando o sujeito está cônscio dela, ou seja, ela é reconhecida pela consciência. Não existe uma emoção inconsciente, e, se um impulso emocional é sentido de forma inadequada, uma repressão (o recalque) recai sobre a ideia e a separa do afeto. É oportuno esclarecer que, em Psicanálise, o afeto não é recalcado, mas sim sua representação. O que é recalcado são os significantes que se enlaçam ao afeto. De todo modo, existe uma racionalidade das paixões, que aparece de modo paradoxal, como uma dor, um evento infeliz, um sofrimento, mas, segue também uma lógica baseada em uma racionalidade, que faz com que daí surja a subjetividade.
Freud (1918) denomina a paixão de enamoramento e sustenta que esta só é possível a partir de uma supervalorização – uma idealização – do objeto amado, o que promove um empobrecimento do Eu e da libido em favor desse objeto. No entanto, assim como no amor, a paixão é o ideal substituto de um objeto perdido na infância e define os contornos do objeto da paixão. Em Tristão e Isolda encontramos esse determinismo inconsciente na história de Tristão, que carrega em seu nome sua condição existencial: alguém marcado para ser triste, para viver sob “o sol negro da melancolia”, sob o signo da paixão–tristeza. Uma criança que vive a perda desde o seu início: o pai acaba de morrer e a mãe não sobrevive ao parto. É a partir desses elementos de sua vida que ele construirá os contornos de sua paixão, ou seja, a partir da imagem de seus pais mortos e que constituíram para sua existência, uma perda irreparável.
Na perspectiva freudiana, teríamos, então, o enamoramento como um modo de paixão, o que implica em uma diminuição na capacidade de comando do Eu, uma vez que a sombra do objeto idealizado recai sobre o mesmo e assume o controle. Neste caso, há uma intensificação dos valores do objeto em detrimento aos valores do Eu e o objeto da paixão ocupa o lugar de ideal. A esse respeito, diz Freud:
O ego se torna cada vez mais despretensioso e modesto e o objeto cada vez mais sublime e precioso, até obter finalmente a posse de todo auto amor do ego, cujo auto sacrifício decorre, assim como consequência natural. O objeto, por assim dizer, consumiu o ego. Traços de humildade, de limitação do narcisismo e de danos causados a si próprio ocorrem em todos os casos de estar amando” (FREUD, 1921, p. 143).
Isso posto, em Freud, os movimentos de massa – e aqui podemos inserir os fenômenos de comunicação de massa - representam a resposta de um sujeito apaixonado pelo líder que, identificado especularmente a seus semelhantes, entra no circuito dos ideais.
Em seu Seminário X, Lacan (1962, p. 20) busca a etimologia da palavra “emoção” para colocá-la como uma forma de movimento e, de modo mais específico, um lançar para fora, “[...] fora da linha do movimento – é o movimento que se desagrega, a reação a que chamamos catastrófica”. Este “fora da linha do movimento” de Lacan representa uma ideia de Aristóteles e articula isso à dimensão do trágico, do agir e do padecer. Na concepção aristotélica, os dois conceitos – agir e padecer - são inseparáveis, embora designem uma potência distinta. Padecer é, potencialmente, inferior a agir, tendo em vista que o paciente busca alguma coisa que cause modificação fora de si, em um objeto externo, enquanto que o agente possui em si mesmo o poder de mudança. Em outros termos, padecer é ser movido: movimento que vem de fora. Desse modo, a paixão é sempre provocada por uma configuração imagética que afeta o sujeito e o faz reagir, normalmente de improviso e constitui-se como sinal de que o sujeito vive na dependência do outro (LÉBRUN, 2002).
Aristóteles, em seu livro Retórica das paixões, destaca que somente sujeitos imperfeitos podem apaixonar-se e os deuses, por sua posição hierárquica, não possuem paixões. É a imperfeição, fonte de impotência, que funciona também como fonte inventiva de um modo discursivo em que o sujeito, no caso específico de Aristóteles, o orador, irá utilizar-se de estratégias para suscitar – ou apaziguar – as paixões em um dado auditório. Assim, saber jogar com as emoções e os seus efeitos sobre um dado público é o que fará com que a técnica da oratória se desenvolva e ao Pathos seja atribuído um caráter oratório.
Por esse caminho, uma mudança se faz necessária: o Pathos não se encontra tão somente do lado da passividade. Em razão de seus efeitos em um dado auditório, por sua configuração discursiva, pelos modos em que o orador desperta determinadas reações no ouvinte é que o pathos será colocado na perspectiva de uma ferramenta que faz movimentar a alma do auditório. Nesse sentido, cabe ao sujeito-comunicante convencer não somente pelo uso dos argumentos racionais, mas, antes, cabe-lhe tocar as emoções do sujeito-destinatário. É neste caminho que Aristóteles define a paixão como “[...] tudo que faz variar os juízos, e de que se seguem sofrimento e prazer”. Sim, é na ambivalência que a paixão se instala, na lógica do sofrimento e do prazer. O que se coloca, nestes termos, é que no sujeito da paixão amorosa, por exemplo, o prazer da presença do objeto amado – quando esta ocorre – se mistura à ameaça constante da perda do objeto.
Amar e odiar, sofrer e sentir prazer, movimentos contrários, mas que fazem parte da existência humana. Para Aristóteles (2000), tais situações não devem ser extraídas do sujeito, não devem ser condenadas e também não devem ser “ortopedicalizadas”. Sua existência no psiquismo implica que o apaixonado não escolheu a paixão e, portanto, não é responsável por ela. Responsável ele é pelo uso que faz da mesma. Isso posto, o homem virtuoso é aquele que possui a boa medida de suas paixões.
Durante muito tempo o Pathos foi tido como um fenômeno irracional e deveria contrapor-se à organização lógica, ao logos, ainda que em Aristóteles não seja questão de se declarar uma guerra às paixões. É com Descartes ([1648]/2007), sobretudo, que o Pathos será compreendido como algo da ordem do indesejável no sujeito. Esse autor sugere que o homem aprenda a adestrar suas paixões (p. 59). No entanto, por mais paradoxal que possa parecer, Descartes declara que “[...] somente das paixões é que depende todo o bem e todo mal desta vida” (p. 141) e cabe ao homem manejá-la com destreza, a fim de que ele não seja pelas paixões dominado.
De modo geral, de um lado, temos a paixão como algo de passional, de outro, como algo patológico. O passional implica em uma categoria ética e o patológico em uma categoria psiquiátrica. Para Lebrun (2002, p.31), a contemporaneidade assiste ao deslocamento do passional para o patológico, o que implica o deslocamento das condutas do campo da ética para o campo da terapêutica. Quais as consequências disso? É que, de um lado, tem-se a des-responsabilização do sujeito, com sua retirada de cena daquilo que o torna mais peculiar – e o faz sujeito – que é a capacidade de responder pelo seu destino; de outro, tem-se um excesso de “medicalização das condutas” e o retorno de uma forma de controle baseado na microbiologia e no poder do especialista. Se os estóicos apregoavam que era necessário exorcizar a paixão, porque a mesma é estranha ao sujeito, os “[...] atuais médicos da paixão não têm mais como objetivo tornar o indivíduo sábio ou virtuoso, mas simplesmente adaptá-lo à vida, libertando-o de suas inibições e angústias. Resta-nos apenas curar os doentes e tratar deles...” (ibid.), o que configura uma antropologia que considera a paixão como patológica.
Como se vê, a Psicanálise trata a paixão tanto como um estado amoroso, quanto como um estado da alma. A doutrina freudiana nos permite dizer que a oposição entre o afetivo e o intelectual é caduca. Do mesmo modo, a paixão aqui não é vista como um efeito que invade o corpo de um sujeito passivo, mas um efeito que toma o corpo a partir da ação de um significante. Com isso, a psicanálise demonstra que as paixões são capazes de fazer adoecer o sujeito, mas também são capazes de fazer o sujeito. Desse modo, as elas estão colocadas do lado do ser, e não do objeto que poderia causar a paixão.
Se em Freud, conforme visto, o afeto se opõe ao pensamento, com Lacan, a partir do termo “paixão”, pensamento e afeto estão enodados. O que a paixão nos ensina é que não há representação sem a presença de um afeto. Para fazer isso, Lacan recorre à tradição filosófica das paixões da alma, conforme visto acima, e trabalha com as paixões do ser, pois elas tratam das relações do sujeito com o Outro. Assim, a paixão é uma ação, mas é, ao mesmo tempo, algo que se impõe ao sujeito sendo, portanto, uma “escolha forçada”. Forçada por qual coisa? Pela falta-a-ser que é o sujeito que, por ser barrado, jamais encontrará uma representação última e completa, o que o faz buscar no Outro o que vai acalmar e preencher esta falta-a-ser.
Em um texto denominado Televisão, Lacan (1974) lista seis formas de paixão, a saber: a tristeza, o gaio saber, a felicidade, a beatitude, o tédio e o mau humor. Para esse autor, a tristeza é a paixão central na modernidade e ela é um saber, pois revela a condição de desamparo que é inerente ao humano. Por outro lado, o gaio saber é um saber que implica o sujeito no campo do desejo e o leva a querer convencer o outro do interesse daquilo que se pensa, pois há um pulsar de vida nessa paixão. Em consonância a essa paixão, há uma terceira a ser ressaltada: a felicidade. Segundo Lacan (1974, p.525), “O sujeito é feliz”, pois o sujeito é tomado por uma paixão sem contrários. E Lacan interroga: “[...] onde está o que traz felicidade? Exatamente em toda parte” (id; ibid.).
A quarta paixão citada por Lacan, a beatitude, refere-se a um modo específico de se gozar de Deus, pois se trata de um gozo que busca a unidade total do sujeito com o objeto de gozo; ora, tal unidade promove o tédio. Portanto, gozar de Deus é sempre um gozo que provoca um tédio, uma vez que é um tipo de gozo que o sujeito busca repetir. Finalmente, Lacan fala do mau humor como um tipo de paixão particular, um modo de o sujeito lidar com a insuportabilidade do Real.
Se, na Psicanálise, encontramos a conceituação das paixões do ser, ela nos faz pensar também nas paixões amorosas como um modo da paixão do ser, que pode estar do lado da felicidade ou do lado da tristeza, mas também do lado do gaio saber. De qualquer maneira, a paixão amorosa é uma emoção veemente que toma conta do sujeito e que, na maior parte das vezes, o deixa sem qualquer possibilidade de controle pela razão.
Para saber mais: https://freudcontemporaneo.webnode.com/erotismo-midia-e-subjetividade/
No mais, até breve!
Cássio Eduardo Soares Miranda. Psicanalista. Professor adjunto da Universidade Federal do Piauí.

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