A falta de certeza sobre o próprio sexo
um corpo é algo que é feito para gozar, gozar de si mesmo (Lacan, 1974)
A realidade humana é inquietante. Um dos motivos de sua inquietação se dá pelo fato das incertezas que povoam, circulam e habitam o humano se manifestarem naquilo que não tem nada de natural na condição humana, que é o sexo. Talvez por isso que certas turbulências tomam conta de nós em razão mesmo da falta de certeza sobre o próprio sexo, ou seja, de uma corriqueira e instigante incerteza. É sempre oportuno destacar que a dimensão do "ser", para os humanos, está intrinsecamente associada a "ser homem" ou "ser mulher", não sem antes de passar pelo olhar do Outro.
Como Freud já havia destacado, lá onde os psicanalistas chegaram os poetas estiveram antes, antecipando, assim, alguma questão que se colocaria aos psicanalistas. Alguns poetas da sétima arte problematizaram a angustiante pergunta que toca a todos, sobre o que é ser um homem ou uma mulher. Podemos pensar no nada "água com açúcar" francês "Minha vida em cor-de-rosa", ou no sensível "A garota dinamarquesa" e, por fim, no perturbador "A pele que habito", de Pedro Almodóvar. Cada qual aponta sua pergunta e uma possível resposta para a multiplicidade de questões que o desejo coloca ao humano e que necessariamente não se encontra em consonância com o real do corpo. A meu ver, no entanto, Pedro Almodóvar, sinaliza a atroz probabilidade da mudança radical dos desejos pelos quais o sujeito pode passar por ela, principalmente à medida em que se coloca como objeto de gozo nas mãos do outro.
A profusão de possibilidades apresentada por Almodóvar não é apenas para garantir a presença de sua assinatura em sua obra, com esse traço indelével do sexual em seus trabalhos. A profusão ali ocorre em função de que a labilidade do desejo demonstra que o objeto da pulsão sexual não é fixo, nem previamente determinado, sendo o que há de mais contingente no conjunto de elementos e processos presentes nos atos pulsionais. Isso posto, podemos então dizer que o objeto sexual de um pênis não é necessariamente uma vagina, mas pode ser uma mão, uma boca, o ânus, outro pênis, um orifício qualquer e também a vagina. Com isso, a personagem Vicente, habitando a pele de Vera, serve para demonstrar, em tela, que o real é sem lei e, ao mesmo tempo, que não há nada no real da corpo ou do psiquismo que dê conta de definir o masculino ou o feminino.
Ora, se não há nada no real do aparelho psíquico que dê conta de significar de antemão o que é ser homem ou mulher, cabe a nós, com os recursos que a cultura nos oferta, fazer alguma coisa com a falta de certeza sobre o próprio sexo. Uma dessas coisas talvez seja fazer alguma arte com a incerteza; ou talvez com o próprio corpo.
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